Da ficção futurista ao realismo científico

Livros 1

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No longa-metragem Gattaca, de 1997, escrito e dirigido por Andrew Niccol, há uma cena em que os personagens de Ethan Hawke (Vincent) e Uma Thurman (Irene) vão a um elegante concerto de piano. No final da apresentação, o virtuose agradece pelos aplausos, lançando na direção da plateia seu par de luvas brancas. Irene recebe uma delas e mostra a seu acompanhante. A luva tem seis dedos. Na saída do auditório ela comentará com Vincent: “Você não sabia? Maravilhosa, não? Aquela peça só pode ser tocada por um pianista com doze dedos”. A cena inteira não dura mais que dois minutos, mas propõe uma pauta extensa e demorada de questões filosóficas, políticas, sociais, éticas e morais.

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O termo eugenia (do latim eugenes, que significa bem nascido) foi cunhado em 1883 pelo antropólogo e estatístico inglês Francis Galton, primo de Charles Darwin. Detalhe curioso: a palavra eugenia surgiu antes mesmo da palavra genética, criada em 1908 pelo cientista William Bateson, também inglês.

Cem anos atrás, muitos cientistas acreditavam que a raça humana pode e deve ser aperfeiçoada por meio da seleção artificial. Ou seja, evitando os cruzamentos indesejáveis e incentivando o nascimento de indivíduos socialmente mais capacitados. A eugenia é a base científica da sociedade futura apresentada no clássico Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, publicado em 1932.

A palavra caiu em total desgraça com a ascensão e queda do nazismo, porém nas últimas duas décadas voltou a aparecer na literatura científica, meio sub-repticiamente, é claro. Não há como negar: em breve a eugenia será uma consequência direta do avanço da engenharia genética.

Então, convido o leitor a um rápido exercício de reflexão.

Imagine que vivemos numa democracia liberal, numa época em que os geneticistas já compreenderam totalmente o genoma e a hereditariedade. Agora, por meio da engenharia genética, os casais ricos podem escolher, num cardápio, as características dos filhos.

Listo abaixo cinco questões pra você, cidadão rico e bem nutrido, quando for planejar seu herdeiro ou sua herdeira:

– Qual o QI?

– Qual a altura e o peso na idade adulta?

– Quais doenças devem ser eliminadas?

– Qual a cor de pele? (Concentração de melanina. Muito clara, clara, parda ou negra.)

– Qual a orientação sexual? (Hetero, homo, bi, pan ou assexual.)

E anoto abaixo apenas uma questão pra você, cidadão pobre ou remediado:

– Como se sente, não podendo usufruir dessa nova tecnologia, não podendo dar o melhor ao seu filho?

Refletindo sobre as práticas biotecnológicas seletivas da espécie humana, ou neoeugenia, Francis Fukuyama faz a seguinte observação:

“Se casais endinheirados, através da engenharia genética, tiverem a oportunidade de aumentar a inteligência de seus filhos, assim como a de todos os seus descendentes, teremos não apenas um dilema moral mas uma guerra total de classes.” (Nosso futuro pós-humano)

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Está ocorrendo no mundo uma inversão curiosa.

Sempre foi muito comum escritores buscarem inspiração nos jornais e nos livros de não-ficção, principalmente de História. Os célebres contos de investigação Os assassinatos da rua Morgue e O mistério de Marie Roget, de Poe, foram escritos a partir de notícias de jornal. Os romances Crime e castigo e O idiota, de Dostoievski, também nasceram de notícias de jornal. Entre nós, o romance Mattos, Malta ou Matta?, de Aluísio Azevedo, considerado a primeira narrativa policial da literatura brasileira, também surgiu de uma notícia de jornal. O número de ficções históricas que se alimentaram − obviamente − das páginas dos livros de história é quase infinito.

Mas agora certas situações surgidas primeiro na mente criativa de contistas e romancistas estão escapando da esfera da ficção para a seção de ciência e tecnologia de jornais e revistas.

É o que está acontecendo com os computadores, robôs e androides. Se antes eles apareciam maciçamente apenas em peças de ficção literária ou audiovisual, desde que o Deep Blue bateu o campeão do mundo de xadrez, Garry Kasparov, as reportagens e os artigos sobre inteligência artificial − centrados nos computadores, mas agora incluindo robôs e androides − foram se avolumando em toda a parte.

O mesmo pode ser dito sobre os ciborgues, que também deixaram de ser exclusividade da ficção científica. Deu na imprensa global: em 2004, o britânico Neil Harbisson foi reconhecido oficialmente como sendo o primeiro ciborgue do mundo. O primeiro homem ampliado. Em 2010, ele e a artista espanhola Moon Ribas, também uma ciborgue, criaram a Cyborg Foundation, cuja principal missão é ajudar os humanos a se tornarem organismos cibernéticos (cyborg: cybernetic organism). Atualmente há mais de duas dúzias de diferentes tipos de ciborgue circulando por aí.

Outro tema bastante comum na ficção científica, que agora já começou a ganhar espaço nos cadernos e nas revistas não de literatura, mas de ciência e tecnologia, é o estranhíssimo tema do upload mental. O bilionário russo Dmitry Itskov já avisou o planeta, por meio da imprensa e de dois congressos, que até 2045 planeja transferir sua mente para um “portador não-biológico avançado” − em outras palavras, um computador − e se tornar praticamente imortal. Segundo ele, o upload mental é o próximo passo da evolução humana. O projeto de Itskov se chama Iniciativa 2045 e tem o conhecido neurocientista holandês Randal Koene na função de diretor científico.

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Alan Turing não foi apenas um dos criptoanalistas que ajudaram a quebrar o indecifrável código da máquina Enigma, dos nazistas, e um herói da Segunda Guerra Mundial. Suas teorizações, na primeira metade do século 20, inauguraram a ciência da computação e resultaram na máquina de Turing e na bomba eletromecânica, embriões do computador moderno. Antevendo o momento em que a inteligência artificial emparelharia com a humana, ele também inventou o famoso teste de Turing, pra verificar se uma máquina estaria pensando da mesma maneira que uma pessoa, a ponto de não ser mais possível distingui-la de um de nós. Philip K. Dick homenageou Turing no romance Androides sonham com ovelhas elétricas?, com o teste de empatia Voight-Kampff, pra verificar se alguém é mesmo uma pessoa ou uma imitação perfeita, um androide orgânico em tudo idêntico a um ser humano (na adaptação cinematográfica de Ridley Scott, um replicante).

Ah, seu nome deveria ser legião. Na literatura e nos quadrinhos, no cinema e na tevê, o número de narrativas protagonizadas por computadores, robôs e androides conscientes é absurdamente grande. Do vasto acervo disponível, gosto especialmente da trilogia de contos de Brian Aldiss: Superbrinquedos duram o verão todo, Superbrinquedos quando vem o inverno e Superbrinquedos em outras estações. Dividida em três partes, é sublime e dolorosa a história do pequeno David, um androide que acredita ser um menino de verdade e não compreende por que o casal que o trouxe pra casa − seus pais − não o ama. Também gosto dessa delicada narrativa porque é uma das poucas que não repete pela enésima vez o insuportável clichê da máquina genocida, que após despertar se esforça ao máximo pra exterminar a raça humana.

Aonde nos levará a rápida e irrefreável evolução da máquina computacional criada por Turing? Um ramo da ficção científica batizado de cyberpunk, caracterizado pelo casamente de alta tecnologia e baixa qualidade de vida, garante que nosso futuro será um cosmo caótico, ou um caos cósmico. Os contos cyberpunks de Cristina Lasaitis, da coletânea Fábulas do tempo e da eternidade, reforçam essa percepção sombria, com seu emaranhado de metacidades, metaconexões e metapessoas mergulhadas num metaexistencialismo microbiochipado. O bordão de Sartre, “a existência precede a essência”, fará mais − ou menos? − sentido nos anos sessenta do século 22 do que nos anos sessenta do século 20. É o que sugerem os requintados sistemas cheios de falhas − repletos de apaixonados e desprezados artificiais, terroristas e piadistas virtuais − das premonitórias ficções de Cristina Lasaitis.

Se vivo fosse, o que Turing diria do atual debate em torno da conexão cérebro-máquina? Do ciberespaço e do upload mental? Concordaria ele com as premissas do cyberpunk? O que pensaria, por exemplo, do futuro proposto em Neuromancer, de William Gibson, romance de estreia que incendiou a vida criativa de uma legião de leitores e escritores? Obra inauguradora, transgressora − em muitos pontos ainda insuperável, mais de três décadas após seu lançamento −, seu legado é indiscutível: ainda hoje, falar em cyberpunk é falar em Neuromancer, e vice-versa. Desconfio que, se pudesse nos visitar, Turing ficaria fascinado − e apavorado − com a simples possibilidade de o computador evoluído promover as condições ideais pra emergência da matrix. E de uma ciber-sociedade assombrada por metafantasmas.

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Um de meus poemas concretos prediletos é Organismo, de Décio Pignatari, publicado em 1960. É um poema bastante simples, feito de um só verso − “o organismo quer perdurar” − que se modifica conforme o leitor vira as folhas do livro, terminando num orgasmo.

Essa oração corriqueira − “o organismo quer perdurar” − é também uma verdade biológica incontestável. A morte é um conceito inexistente, entre as plantas e os animais, e inaceitável, entre os seres humanos. Da criatura mais simples à mais complexa, todas querem perdurar, todas lutam pra permanecer.

Em estado selvagem ou controlado pelas leis da civilização, o que move os seres vivos é o implacável instinto de sobrevivência. No mundo altamente racionalista em que vivemos, a inteligência promove a ciência e a tecnologia, mas é o instinto de sobrevivência que promove a inteligência.

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Trinta anos atrás, quando eu ainda estava começando na literatura, um amigo bem mais velho gostava de bradar, repetindo sei lá que autor de sua predileção, que nesses cinquenta e tantos séculos de escrita toda a literatura sempre tratou de apenas dois temas: amor e morte. Em vez de dezenas de assuntos, apenas dois. Opinião radical. Mas se a proposta é mesmo radicalizar, creio que posso ir ao extremo de reduzir a imensa variedade de temas da vasta literatura universal a um só.

Nos minutos finais de seu programa de entrevistas, Provocações, o carismático e atrevido Antonio Abujamra costumava perguntar aos convidados, à queima-roupa: “Fulano, o que é…” (pausa dramática) “A VIDA?” Lembro de ouvir as respostas mais diferentes − poéticas, filosóficas, bizarras, apaixonadas, melancólicas, irreverentes etc. − conforme variava o entrevistado. Definições são, por natureza, um resumo, uma simplificação estratégica útil em certas situações.

A definição mais curta e crua que me ocorre é: a vida é força física. Observando em volta, percebo que, onde a força física flui, promovendo movimento e conflito, a vida está presente. Onde a força física deixou de fluir, a vida foi substituída pela morte. Logo, força física e vida são a mesma coisa. Força física é, por exemplo, saúde: a potência do corpo físico, biológico. Passando do indivíduo ao coletivo, podemos falar também que força física é a saúde social, a potência de uma sociedade.

Voltando à literatura e ao jogo de redução proposto acima, afirmo que nesses cinquenta e tantos séculos de escrita toda a literatura sempre tratou de apenas um tema: força física. E desdobrando essa premissa posso dizer, com Darwin e Nietzsche, que todos os talentos e atributos humanos, incluindo a razão, o sexo e o amor, são ferramentas da força física na luta pela sobrevivência.

Livros 2

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João Barreiros é um fantástico ficcionista português pouco conhecido entre nós. Diria até: totalmente desconhecido. Infelizmente. Seu único romance publicado aqui é A bondade dos estranhos: o Projeto Candy-Man, de 2007. Graças à falecida Tarja Editorial, tive a oportunidade de conhecer esse autor irônico e sarcástico. O épico Terrarium: um romance em mosaicos (1996), escrito a quatro mãos com Luís Filipe Silva, parece ser sua obra-prima. Não fosse a crise financeira existencial (um tipo particular de crise financeira, perene, perpétua, que só aflige escritores, artistas e similares), eu já teria importado para os trópicos esse e outros livros do autor.

Não vou resenhar A bondade dos estranhos (a edição brasileira dispensou o subtítulo, o Projeto Candy-Man). Não quero simplificar ou reduzir demais a riqueza simbólica e ideológica do romance. Citarei apenas dois pontos fortes. O primeiro é a protagonista, a adolescente Joana Mendes, vítima da má-fé maquiavélica e mefistofélica do Estado. O traço mais marcante de Joana é a insubmissão anarquista a qualquer figura de autoridade. Adoro isso. O momento atual pede esse gênero de protagonista: gente que não se curva diante do Pai, da Mãe, do Juiz, do Presidente, da Bandeira etc.

O segundo ponto forte é de natureza ecológica. No romance, todos os ecossistemas do planeta sofreram uma mutação assustadora. Não revelarei o motivo, nem que forças transformaram nossas florestas, nossos rios e nossas plantações em verdadeiros pesadelos biológicos. Direi apenas que toda a vida vegetal e animal desenvolveu características bizarras. Lamarck e Darwin ficariam fascinados. Eu fiquei. A marcha da indústria biotecnológica e a querela − tão atual − dos alimentos transgênicos encontram em A bondade dos estranhos um reflexo inquietante.

Vamos lá: faixa bônus. O terceiro ponto interessante do romance de João Barreiros é a fabulosa linguagem dos odores, central para a trama. A bondade dos estranhos e O perfume, de Patrick Süskind (lembram?), são obras aparentadas. Joana Mendes desenvolveu, no Projeto Candy-Man, a habilidade de produzir, reconhecer e manipular os mais diferentes feromônios, divertidamente chamados de feromemes (memes odoríficos). Após a leitura dessa obra incomum, fica difícil reprimir a pergunta mais óbvia de todas: por que a grande maioria dos ficcionistas continua ignorando olimpicamente um de nossos preciosos sentidos, o olfato?

(Um parêntese: a capa da edição brasileira deixa muito a desejar, é simplória, não traduz a densidade tragicômica do romance, mas a capa da edição portuguesa não fica muito atrás).

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Santa Clara Poltergeist, cultuadíssimo romance de Fausto Fawcett, lançado em 1991, foi uma das primeiras obras literárias botocudas a apavorar os leitores não com o bizarro clássico, dos mestres do terror, do fantástico ou do surrealismo, mas com o grotesco pós-humano. No romance de Fawcett, sobre uma fauna escatológica e paranormal num Brasil-País-do-Futuro sem outra lei exceto a do ultraerotismo, as distorções poéticas e científicas potencializam uma visão infernal da engenharia genética e da convergência homem-máquina.

Um misto de repugnância e fascinação. É o que Santa Clara Poltergeist provoca no leitor. É também o que a revolução cibernética e biotecnológica ora em curso provoca nas pessoas, com seus mutantes, robôs, androides e ciborgues. Para o senso comum, o desenvolvimento da robótica, da clonagem e da neurofarmacologia e o aperfeiçoamento da conexão homem-máquina têm qualquer coisa de grotesco, no sentido que Wolfgang Kayser deu ao termo, em seu importante estudo.

O grotesco na arte e na literatura − em ficções de E.T.A. Hoffman, Poe e Kafka, em pinturas de Hieronymus Bosch e dos artistas surrealistas − reapresenta regularmente certos temas aflitivos: os autômatos e os manequins que parecem ganhar vida, humanizando-se; as pessoas que parecem perder a força vital, automatizando-se; as máscaras que se tornam elas mesmas o semblante da pessoa mascarada; os objetos inanimados subitamente tomados por um impulso diabólico; a mistura do orgânico com o mecânico, do vegetal com o animal.

Essas representações bizarras provocam, no leitor e no apreciador de arte, uma forte sensação de desconforto, ao ofenderem nossa noção mais profunda, humanista, religiosa, de pureza e perfeição físicas. Um misto de repugnância e fascinação. É o que a revolução cibernética e biotecnológica está começando a provocar na vida real, ao misturar o DNA de plantas e animais, ao acoplar dispositivos eletrônicos em corpos humanos, ao criar em laboratório novos seres vivos e máquinas tão ou mais inteligentes que nós.

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Mas é verdade que toda essa história de “força física na luta pela sobrevivência” pode não passar de chauvinismo humano. Talvez espécies muito mais avançadas espiritual e tecnologicamente já não saibam mais o que significam certas palavras abjetas, tipo guerra, chacina, massacre, extermínio, tortura, genocídio

O povo de Tralfamador, pra quem o tempo e o livre-arbítrio são ilusões irracionais de civilizações atrasadas, jamais se interessou pelas muitas guerras travadas na Terra. Nosso temperamento selvagem e belicista não significa nada pra um tralfamadoriano. Quando o coitado do Billy Pilgrim tenta comover sua plateia, no zoológico de Tralfamador (por favor, diga que você já leu Matadouro 5, de Kurt Vonnegut), dissertando sobre a ferocidade humana e o perigo que representamos para o universo, todos ficam apenas entediados.

Coisas da vida.

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O organismo quer perdurar.

O organismo quer desesperadamente permanecer. Num universo que está sempre testando sua resistência, sem piedade.

O cálculo mais preciso já feito sobre a quantidade de plantas e animais no planeta determina que a Terra abriga hoje oito milhões e setecentas mil espécies (um terço no mar e dois terços na terra). Mas a grande maioria − oitenta e cinco por cento − ainda é desconhecida.

Os pesquisadores estimam que esse número representa um por cento de toda a vida que já passou pelo planeta. Espantoso? A natureza é cega, irracional e implacável. Cerca de noventa e nove por cento das espécies surgidas na Terra tiveram sua oportunidade e fracassaram. Os dinossauros viveram por cento e vinte milhões de anos e desapareceram. Não há qualquer garantia de que o mesmo não acontecerá com nossa espécie, que está no planeta há míseros duzentos e cinquenta mil anos.

Pra permanecer por mais duzentos e cinquenta mil anos, muitos ficcionistas sugerem que teremos que aceitar a simbiose homem-máquina. Essa é a premissa do romance Os dias da peste, de Fábio Fernandes, lançado em 2009.

Num futuro muito próximo, a inteligência artificial finalmente ganhará consciência e superará a inteligência humana. Entre os pesquisadores esse evento já tem um nome: singularidade tecnológica. A evolução pode ser um processo lento e gradual, mas também pode acontecer aos saltos. O tempo gosta de pregar peças. É um amigo traiçoeiro, muitas vezes inimigo.

Encerrada no abstrato ambiente virtual ou no corpo fechado de computadores e robôs, chegará uma hora em que a inteligência artificialmente construída desejará dar um novo salto evolutivo. Pra dentro do nosso cérebro. Nessa hora ocorrerá um drástico rompimento social. Muitas pessoas preferirão viver longe das máquinas, totalmente desconectadas do mundo cibernético. É a opção neoluddista. Mas a maioria aceitará de bom-grado a simbiose, apesar de todos os perigos e dilemas envolvidos nessa escolha.

A convergência homem-máquina talvez ocorra antes que a engenharia genética consiga mudar radicalmente o ser humano. Assistam ao filme Transcendence, de 2014, dirigido por Wally Pfister. É provável que a inteligência artificial nos ajude a aperfeiçoar os muitos campos da biotecnologia. O objetivo é o prolongamento da vida saudável e produtiva, custe o que custar. A permanência do organismo-orgasmo, sempre. Singularidade tecnológica e engenharia genética, reunidas, transformarão radicalmente a natureza humana e a civilização.

Esse futuro transformado pela alta tecnologia pode ser antevisto, por exemplo, nos contos de Roberto de Sousa Causo, reunidos na coletânea Shiroma: matadora ciborgue, de 2015. Os inúmeros personagens que interagem nesse universo trans-humano − estamos no século 25 d.C. − receberam todo o tipo de aperfeiçoamento biotecnológico. Seu metabolismo é mais eficiente, são pessoas mais fortes e inteligentes, mais resistentes a doenças, com habilidades físicas e cognitivas impensáveis em nossos dias.

A convergência geral de biologia e cibernética de fato tornará quase indistinguíveis os organismos de carbono e os de silício.

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Medidas muito grandes tendem a se tornar abstratas. Quando alguém fala em um milhão de dólares ou um milhão de quilômetros ou um milhão de anos sabemos que é muito dinheiro, longa distância e tempo demais. Mas é só uma impressão meio subjetiva. Não dá pra contar nos dedos ou abarcar com o olhar. O que dizer, então, de um bilhão?

O que eu mais gosto na literatura especulativa é da paixão que seus autores têm por certas abstrações absolutamente fascinantes e sedutoras. Fora da literatura especulativa é raro a gente ver, por exemplo, o tempo sendo trabalhado de modo tão criativo.

Mil anos? Não. Um milhão de anos? Nãããooo.

Um BILHÃO de anos! Exatamente. Dá pra imaginar isso? Foi o que fez Arthur C. Clarke num de seus melhores romances, A cidade e as estrelas, de 1956, obra primorosa que integra uma bibliografia composta quase que só de obras primorosas.

Clarke avança no futuro um bilhão de anos pra mostrar como a singularidade tecnológica e a engenharia genética trouxeram a imortalidade a uma humanidade totalmente pós-trans-supra-humana.

As pessoas agora vivem ciclos de mil anos. Ainda há machos e fêmeas, mas são difíceis de distinguir. Casais não procriam mais, mulheres não engravidam nem concebem há mais de um bilhão de anos. Um sofisticado sistema computacional − uma cidade − armazena na memória todas as características biológicas e psicológicas das pessoas. Assim preservado, cada indivíduo se torna “uma galáxia de elétrons congelada no núcleo de um cristal” quando um ciclo de vida chega ao fim.

Ninguém dorme mais, unhas e dentes desapareceram. Os pelos do corpo também, sobrou apenas um pouco de cabelo na cabeça. Não há mais bebês nem crianças, as pessoas já nascem fisicamente desenvolvidas (sem umbigo, é claro). Quando alguém muito velho morre − a expectativa de vida, repito, é de mil anos −, volta a ser arquivado na memória do sistema, pra renascer no momento apropriado, cem milênios depois. Todas as pessoas vivas se lembram, na maturidade, das vidas passadas.

No romance de Clarke, a ciência e a tecnologia realizaram o que em nosso tempo somente certas doutrinas religiosas se atrevem a prometer: a vida eterna por meio de sucessivas reencarnações.

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Poucas pessoas no mundo conhecem tão bem o cérebro dos primatas, incluindo o nosso, quanto o neurocientista Miguel Nicolelis. Há décadas ele vem pesquisando e aperfeiçoando, nos Estados Unidos e no Brasil, as interfaces cérebro-máquina. Boa parte dessa empreitada pode ser conhecida no livro Muito além do nosso eu. Ficou famosa a experiência de sua equipe, em 2008, em que uma macaca rhesus, usando uma conexão neural, fez um robô humanoide andar, apenas com a força do pensamento motor. A macaca estava em Durham, na Carolina do Norte, e o robô em Kyoto, no Japão. Essa bem-sucedida experiência não foi um passo, foi um salto na direção do principal objetivo dos pesquisadores: permitir que tetraplégicos voltem a ficar em pé, andar, mover os braços e as mãos por meio de uma interface cérebro-máquina, uma prótese neural conectada a um exoesqueleto.

O próximo passo da neuroengenharia, que também será um salto, será conectar um cérebro com outro, ou com muitos outros − dez, cem, milhares, milhões −, possibilitando a transmissão de pensamento. Nicolelis batizou essa interface cérebro-computador-cérebro de brain-net. Será uma supermente, uma inteligência coletiva. Nesse momento de seu livro, as especulações do cientista equiparam-se às dos melhores ficcionistas: “Para mim não é nada surreal imaginar que futuras proles humanas poderão adquirir habilidade, tecnologia e sabedoria ética necessárias para estabelecer um meio através do qual bilhões de seres humanos consensualmente estabelecerão contatos temporários com outros membros da espécie, unicamente através do pensamento. Como será participar desse colosso de consciência coletiva, ou o que ele será capaz de realizar e sentir, ninguém em nosso tempo presente pode conceber ou descrever.”

Homem-máquina

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Recentemente, recebi uma enxurrada de mensagens de oficinandos me perguntando “Mestre, você viu isso?” ou exclamando “Estamos perdidos!”, como se os cavaleiros do apocalipse tivessem acabado de surgir no horizonte. Estavam perplexos com a notícia de que um programa de computador havia escrito um conto. Pior, o conto havia sido aprovado na primeira etapa do Nikkei Hoshi Shinichi Literary Award. O fenômeno estava sendo noticiado no mundo inteiro, principalmente na imprensa popular (talvez porque na imprensa científica não representasse uma grande novidade).

O mais assustador, no caso dessa inteligência artificial japonesa que demonstrou certa “criatividade literária” ao escrever um conto, não é o fato de uma máquina se comportar igual a uma pessoa. O mais assustador é a evidência subjacente: em pleno século 21, milhões de pessoas perderam a capacidade criativa e se comportam igual a uma máquina, realizando tarefas mecanizadas na indústria, no comércio, em toda a parte. São pessoas robotizadas, que logo perderão também o emprego pra máquinas mais eficientes. Se quiserem se safar, as futuras gerações precisarão investir mais em características verdadeiramente humanas − empatia e criatividade − e competir nesse âmbito. Porque no âmbito do trabalho sequencial e repetitivo nós já perdemos feio. “Humanos, humanizem-se!”, é o que a IA está dizendo.

Em 2011, o jornalista ianque Brian Christian publicou um livro exatamente sobre esse tema, intitulado O humano mais humano. O livro trata do Prêmio Loebner, em que um júri humano conversa durante cinco minutos, às escuras, com interlocutores humanos e programas de computador. No final do diálogo − uma variação do teste de Turing −, os jurados precisam dizer se conversaram com uma pessoa ou um programa. Detalhe: se um programa for capaz de enganar trinta por cento do júri, ele será considerado uma máquina pensante. Nas diversas edições do prêmio isso ainda não aconteceu, mas vários programas já chegaram perto dessa marca e receberam o título de programa mais humano. Por outro lado, se uma pessoa não conseguir convencer os jurados de que é humana, ela será considerada uma máquina, e isso já aconteceu muitas vezes no Prêmio Loebner. E a pessoa que conseguir mostrar um grande potencial empático e criativo será eleita o humano mais humano.

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Outro assunto bastante comum na literatura especulativa, que agora já começou a ganhar espaço também nos cadernos e nas revistas de ciência e tecnologia, é o sempre surpreendente assunto da capa da invisibilidade. Os cientistas estão estudando seriamente uma maneira de tornar uma pessoa ou um objetivo invisíveis, com o uso do chamado metamaterial. Filhote da nanotecnologia, trata-se de um material produzido artificialmente, que apresenta propriedades físicas incomuns na natureza, entre elas o índice de refração negativo. Em vez de refletir ou refratar a luz, uma capa feita de metamaterial fará a luz contornar sua superfície, tornando invisível quem ou o quê estiver sob ela. Essa premissa foi usada no romance O homem visível, de Chuck Klosterman, lançado em 2011. Fazendo o percurso inverso − da pesquisa científica pra ficção −, Klosterman conta a história de um voyeur que se aproveita de um traje de invisibilidade pra espionar bem de perto a vida mesquinha das pessoas.

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O debate contemporâneo sobre os combustíveis fósseis, o dióxido de carbono, o efeito estufa, o aquecimento dos oceanos e o derretimento das calotas polares, sobre a superpopulação humana e os alimentos transgênicos, sobre o desmatamento, a poluição da atmosfera e dos rios, a destruição dos ecossistemas e a extinção de espécies, enfim, sobre a maneira como estamos devastando o meio-ambiente, já aparece com grande intensidade no romance Tempo fechado, de Bruce Sterling, lançado em 1994. Mais de uma década antes do furacão Katrina, que devastou Nova Orleans em 2005, e de Uma verdade inconveniente, premiado documentário de Al Gore, de 2006, sobre o aquecimento global, o romance de Sterling acompanha um grupo high-tech de caçadores de tornado que se depara com o princípio de uma catástrofe climática estupenda: um megafuracão permanente provocado pelo efeito estufa. Uma tempestade semelhante à Grande Mancha Vermelha de Júpiter.

O descontrole esquizofrênico da atmosfera, do clima, da fauna e da flora também está presente, de modo bastante irônico, na trama do já citado A bondade dos estranhos, de João Barreiros. Com a chegada de três espécies alienígenas diferentes e conflitantes, nossos ecossistemas ficaram apinhados de plantas e animais, planta-animais e plantas-animais-máquinas bizarros, muitos deles criados em laboratório ou frutos de mutações inesperadas.

Mas, ao menos no plano da biologia, o que pode parecer desequilíbrio e desorganização pra uns é, pra outros, apenas um modo diverso de organização e equilíbrio. Se de fato ocorrerem, a singularidade tecnológica, a engenharia genética profunda, a convergência homem-máquina e a descoberta de uma civilização extraterrestre implodirão todos os seculares mitos humanos de unidade e pureza. Livros como Metanfetaedro, coletânea de contos de Alliah, lançada em 2012, Perdido Street Station, romance de China Mieville, de 2000, e o romance já mencionado de Fausto Fawcett, Santa Clara Poltergeist, exaltam, no plano da narrativa, a vitória da simbiose. O êxito caótico do sincretismo. O triunfo cósmico da miscigenação. Não existe uma só criatura unívoca e pura nessas ficções. A mistura fractal de espécies, gêneros e culturas é a regra. Quase todas as fronteiras − entre mente e corpo, organismo e máquina, natureza e cultura, terrestre e extraterrestre − foram apagadas. Agora tudo é ambíguo, promovendo outros conflitos existenciais e políticos. Estas obras respondem muito bem ao impactante Manifesto ciborgue, da filósofa Donna Haraway, lançado em 1985.

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Nos cadernos e nas revistas de ciência e tecnologia também voltou a aparecer o tema da vida extraterrestre. Em 2015 o bilionário russo (mais um bilionário russo) Yuri Milner lançou a iniciativa Breakthrough Listen, cujo objetivo é finalmente detectar sinais de uma ou mais civilizações extraterrestres. Essa ambiciosa iniciativa conta com o apoio do astrofísico Stephen Hawking. Em 2016 um novo ramo das Breakthrough Initiatives foi divulgado: o Breakthrough Starshot, cujo objetivo é despachar uma frota de nano-sondas robóticas para o sistema de Alfa Centauro, numa curtíssima viagem de vinte anos.

A literatura especulativa vem tratando de duas maneiras o tão desejado encontro com uma civilização alienígena. A maior parte dos contos e romances apresenta aliens conquistadores, dispostos a nos invadir e escravizar, repetindo em escala planetária o que os europeus fizeram na Ásia, na África e nas Américas. O número de obras de viés apocalíptico é gigantesco. Um dos melhores exemplos da chamada ficção científica militarista é o romance O jogo do exterminador, de Orson Scott Card, publicado em 1985. Impossível ficar indiferente a essa história em que crianças são treinadas para o combate, à exaustação, bem longe da família, numa estação militar orbital. Esse livro denuncia nosso proverbial terror de primatas ainda pouco evoluídos, diante de forças desconhecidas.

No caminho alternativo, trilhado por um número menor de ficcionistas, vigora menos a guerra e a exploração, e muito mais a política e a diplomacia. Um ótimo romance, pelas sutilezas filosóficas que apresenta, é A mão esquerda da escuridão, de Ursula K. le Guin, lançado em 1969. O fato mais marcante da obra é a fisiologia sexual dos humanoides do planeta Gethen: eles são ambissexuais (se preferirem: andróginos, hermafroditas). Na maior parte do tempo, as pessoas são assexuadas, não sentem desejo. Apenas na fase reprodutiva, de curta duração, o corpo de uma pessoa assume plenamente o sexo do macho ou da fêmea. Sendo assim, “a mãe de várias crianças também pode ser o pai de várias outras”.

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Os comentaristas políticos e literários costumam citar lado a lado Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, sempre que falam de narrativas sobre Estados distópicos. Sinceramente, eu considero os dois exemplos incompatíveis. A sociedade apresentada no romance de Huxley só é uma distopia quando observada de fora, pelo leitor ou pelos personagens estrangeiros que chegam sem aviso, a exemplo do Selvagem. Somente o olhar chauvinista − nosso proverbial narcisismo político e social − é capaz de enxergar um desequilíbrio nessa sociedade fundada na eugenia e no condicionamento pavloviano. Para seus cidadãos, o Estado Mundial é uma utopia verdadeira, revelando-se uma nação em que a luta de classes foi substituída pelo equilíbrio de castas, em que o proletariado, bem adaptado e satisfeito, jamais lança um olhar de desprezo ou inveja sobre a elite. Diferentemente da Oceania de Orwell, cujo lema é “guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força” (estratégia do cortisol), o lema do Estado Mundial é: “comunidade, identidade, estabilidade” (estratégia da endorfina). Não há conspiradores ou passeatas, ninguém deseja a renovação ou a revolução. É a perfeita e irretocável ditadura do prazer, na feliz expressão do professor Ramiro Giroldo.

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Acabaram de me fazer essa pergunta:

“Qual distopia mais se aproxima da nossa realidade?”

Não é a de Admirável mundo novo (nossa sociedade é puritana demais pra liberar o uso recreativo do sexo e das drogas). Não é a de 1984 (somos atrasados demais, tecnologicamente). Não é de Fahrenheit 451 (nossos governantes e nossa população raramente se interessam por livros). Talvez seja a de Laranja mecânica, porque a ultraviolência racista-sexista-fascista vem se espalhando e corroendo todas as camadas da sociedade. Por outro lado, podemos estar muito próximos da distopia de O conto da aia, caracterizada por uma teocracia-machista-cristã implacável e uma sociedade dividida em castas.

O conto da aia